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terça-feira, 25 de maio de 2010

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

O FISCAL DA NOITE

Fui eu que vi o Cruzeiro erguer-se do mar e mais tarde chegar até o horizonte de minha varanda; vi duas estrelas muito brilhantes nascerem depois dele e subirem também. Analfabeto olhando as estrelas segui sua navegação sem saber seus nomes; vigiei de meu imóvel tombadilho.
Estava solitário, mas não triste; lembrei o velho dito dos bêbedos: "A noite ainda e uma criança".
Mas o tempo avança. Agora medito no seio de uma noite madura, como a sombra de uma grande árvore; de raro em raro, madura demais, cai uma estrela e se perde na escureza do céu ou do chão. Quase não vejo o mar, apenas o pressinto e o sei arfando lânguido, sem vento.
Deus me pôs nesta rede a olhar a noite. Não tenho sono nem vontade de sair; não telefonarei para ninguém. Sou como um débil mental a quem houvessem dado o emprego de fiscalizar as estrelas, e acompanho com paciência sua marcha lenta. Devo dizer que estão se comportando bem, tanto as mais novas como as mais velhas; andam de leste para oeste de maneira morosa e sensata, guardando com atenção as respectivas distâncias. Se o major-fiscal me telefonar direi que não há nenhuma alteração. O nascimento da lua está marcado para as duas e quarenta e cinco da madrugada; espero que seja pontual e não me de aborrecimentos. O numero de estrelas cadentes e diminuto.
Informarei: "Pequenas baixas; o desperdício de estrelas durante a noite a meu cargo foi mínimo e, creio, inevitável; nosso estoque é imenso, senhor major". O major comunicará ao coronel, este ao general, este ao Presidente da República. O Presidente da República expedirá mensagens congratulatórias a Deus e a Albert Einstein, no Paraíso. Adormeço na rede, e desperto assustado; mas o céu está em ordem, e as estrelas marcham sempre na mesma direção, como crianças bem comportadas. Deus me pôs nesta rede, e o Diabo me fez dormir. Felizmente a lua ainda não nasceu. Risco um fósforo para olhar meu relógio ("a opinião do prefeito de Genebra sobre a hora de Ipanema"), meu famoso relógio anti-magnético, anti-atômico e anti-lírico, e suspiro aliviado; ainda faltam dezoito minutos para o nascimento da lua. Levanto-me e tomo posição em outro angulo da varanda, murmurando: "Vamos providenciar isso".

O POMBO ENIGMÁTICO

Na inelutável necessidade do amor (era quase primavera) pombo e pomba marcaram um encontro galante quando voavam e revoavam no azul do Rio de Janeiro. Era bem de manhãzinha.- Às quatro em ponto me casarei contigo no mais alto beiral – disse o pombo.- Candelária? – perguntou a noiva.- Do lado norte – respondeu ele.Pois, às quatro azul em ponto, a pomba pontualíssima pousava pensativamente no beiral. O pombo? O pombo não.A pombinha, que era branca sem exagero, arrulhava, humilhada e ofendida com o atraso, contemplando acima do campanário todas as possibilidades da rosa-dos-ventos. Mas na paisagem do céu voavam só velozes andorinhas garotas porque as andorinhas mais velhas enfileiravam-se nas cornijas, pensando na morte, como gente fina, lá dentro nos dias solenes de missa de réquiem.Quatro e dez. Quatro e um quarto. Uma pomba sozinha, à mercê quem sabe de um gavião, lendário mas possível. Sol e sombra. Como custa a passar um quarto de hora para uma noiva que espera o noivo no mais alto beiral. Como a brisa é triste. Como se humilha em revolta a noiva branca.Ah, arrulhou de repente a pomba, quando distinguiu, indignada, o pombo que chegava, o pombo que chegava caminhando pelo beiral mais alto, do outro lado, lá onde, um pouco além, gritavam esganadas as gaivotas do mar pardo do mercado. Irônica, perguntou a pomba:- Perdeste a noção do tempo?- Perdão, por Deus, perdão – respondeu o pombo: - Tardo mas ardo. Olha que tarde...- Que tarde? – perguntou a pomba.- Que tarde! Que azul! Que tarde azul!- Mas e eu?! – disse a pomba. – Sozinha aqui em cima!- A tarde era tão bonita – disse o pombo gravemente – a tarde era tão bonita, que era um crime voar, vir voando...- Mas e eu?! Eu?! – queixava-se a pomba.
- A tarde era tão bonita – explicou o pombo com doce paciência – que eu vim andando, que eu tinha de vir andando, meu amor.